sexta-feira, 2 de novembro de 2012

"Acho que essa cena seria patética para um terceiro observador. Eu de cá, sentada nessa cadeira de balanço, lendo outra vez Morangos Mofados e tomando meu chá de maçã com canela com meia dúzia de antidepressivos. Você de lá, sentado no chão, ouvindo seu player, com suas doses de whisky e o seu baseado. Dois estranhos. Dois amantes. Dois amigos. Dois irmãos. Dois "tanto-faz-o-que-viemos-fazer-aqui". Aqui, ali. A cadeira, o chão. Caio F. Abreu, Luciano Pavarotti. O chá de maçã com canela, as doses de whisky. Os antidepressivos, o baseado queimando. Ah, nós nunca estivemos tão próximos e tão distantes. Sentia como se meu sangue pulsasse mais rápido e mais lento no mesmo instante. Sentia como se pudesse morrer ali. Morreria em paz. Morreria contigo? Sim, mas você não morreria comigo. Continuarias vivo, vivíssimo, cada dia mais vívido. Minha presença te trava, tua presença me suga. Começastes a cantarolar Retrato em Preto e Branco. Ah sim... Grande Antônio Carlos Jobim. O beijaria, se pudesse, só pela sua música, pela sua arte que é uma espada que atravessa sem doer, sem cortar, sem machucar. Pelo contrário. Muito pelo contrário. Talvez a voz de Tom Jobim fosse uma espada que cicatriza feridas expostas. Ou talvez o quê fizesse isso fossem os antidepressivos. Agora tanto faz, não importa. Minha alma sangrava, minha mente gritava, apesar de você estar ali, por quê também não estava. Era hora de atitudes. Estava me cansando desses metros entre nós. Estávamos nos estranhando. Isso não estava certo. Já queimamos um pelo outro um dia, lembra-se? Ah, como queimávamos! Éramos brasa, meu amor. Éramos brasa. Eu era uma faísca dessas bem miúdas, de um esqueiro quase sem fluído. Você era gasolina. Um tonel cheio dela. Onde foi parar isso, meu bem? Onde foi parar o calor, a vida? Estamos mortos? Sei que não, mas parecemos. Talvez você devesse tirar esses fones e apagar o seu cigarro, engolir todo o whisky, me tomar nos braços e levar pra tua cama. Talvez eu devesse fechar esse livro sem me preocupar em marcar as páginas, jogar esses comprimidos longe e largar a xícara de chá de canto, me levantar dessa cadeira e me sentar em cima de você, desviando sua atenção desse teu mundinho interno que tanto me assusta. Estamos trancados, meu amor. Trancados em nós."
Alguém.

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